LUA

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Menina vive em casa sem canalização

A vila de Pretchistoe, onde habita a família de Alexandra Zarubina, fica a apenas a 362 quilómetros a norte de Moscovo. Apenas tendo em conta as dimensões da Rússia, o país é atravessado por nove fusos horários. Mas estas poucas centenas de quilómetros funcionam como uma máquina do tempo, transportando-nos para as aldeias descritas pelos clássicos russos. Casas de madeira, como aquele em que vive Alexandra, em estado muito precário, sem canalização nem casa de banho.

Depois de atravessar duas portas baixas e um corredor escuro, entramos na cozinha da casa de madeira no momento em que Alexandra fala por telefone com a família portuguesa com quem viveu durante quatro anos.

"São seis cãezinhos, muito bonitos. Estão bem e a Lúcia também", repete a menina para a "mãe Florinda", o "mano Miguel" e o pai João. Mas a chamada entre Pretchistoe e Barcelos cai. Sandra, assim lhe chama a mãe biológica, não fica triste. A sua atenção vira-se para os livros infantis, aguarelas e lápis que lhe trouxeram os jornalistas.

"O que é isto? Como se constrói o castelo? Como se colam os animais no álbum? Quem é esta menina? E este animal?", pergunta a criança enquanto folheia os livros e recorda, em voz alta, que já viu algumas personagens infantis na casa da "mãe Florinda". Depois de se cansar de livros e tintas, Sandra trepa para cima do forno russo, onde instalou o seu "hospital dos animais". Rapidamente diagnostica que o ursinho branco "tem febre" e que "precisa de uma injecção". Não pára um minuto.

A mãe Natália não dá parte de fraca, mas na casa dos Zarubina há pouco, mas mesmo muito pouco dinheiro e a situação pode ainda piorar. Na sexta-feira, o irmão de Natália foi despedido.

"Não acredito mais nas promessas de João e Florinda. Se quisessem ajudar, já o tinham feito em Portugal", diz Natália, saltando do russo para o português. "Querem investir num café para eu trabalhar? Não estou interessada. Regressei à Rússia e aqui vou recomeçar a minha vida", sublinha, enquanto acende mais um cigarro.

Natália não tem problemas em receber ajuda dos portugueses para Alexandra. "Isso seria muito bom, pelo menos nos primeiros tempos, enquanto não arranjo emprego. Os meus pais ganham algum, mas não podemos viver à custa deles, quero ser independente." Portugal pode não ter ficado definitivamente para trás nos destinos desta família.

APONTAMENTOS

ORIGEM

Alexandra nasceu a 3 de Abril de 2003 no Hospital de São Marcos em Braga. É filha de Natália e do ucraniano Georgi Tsiklauri. Foi entregue ao casal de Barcelos pela própria mãe, que não tinha condições para cuidar dela.

PALMADAS

A criança partiu para a Rússia no dia 20, desconhecendo que já não regressava. Seis dias depois uma televisão russa filmou a mãe biológica a bater em Alexandra.

PAIS PROCESSAM

Os pais afectivos, Florinda e João Pinheiro, ponderam processar o Estado português pela decisão de entregar a menina à mãe biológica. Consideram Natália negligente e incapaz de cuidar da menor na Rússia.

CONSELHO ABRE AVERIGUAÇÃO A JUIZ

O Conselho Superior da Magistratura deliberou ontem mandar averiguar o "contexto das declarações públicas" do juiz que determinou a entrega de Alexandra à mãe biológica. Na semana passada, Gouveia Barros veio a público justificar a sua decisão, admitindo que apenas tinha analisado papéis e que não estava arrependido, mas o órgão de gestão e disciplina dos juízes optou por não abrir um processo disciplinar, sublinhando que "não tem competência para apreciar o mérito e a justeza das decisões dos tribunais".

Após uma tarde inteira de discussão, que não foi pacífica, os 15 conselheiros presentes na reunião elaboraram um comunicado em que informam que aproveitaram para, mais uma vez, "reflectir" sobre a jurisdição de família e menores e sobre os direitos das crianças.

Segundo explicou o vice-presidente do Conselho, Ferreira Girão, o processo de averiguações será feito por um inspector, que ainda será designado e que decidirá se há matéria para avançar para um processo disciplinar. O instrutor terá, a partir do momento em que for nomeado, trinta dias para concluir a averiguação e comunicar se encontrou indícios para inquérito disciplinar. No caso do desembargador do Tribunal da Relação de Guimarães, Gouveia Barros, poderá estar em causa uma violação do dever de reserva.

PRIORIDADE PARA OS VETERANOS DE GUERRA

Médico, inspectores da Procuradoria-Geral da Rússia, representantes da Segurança Social e do poder local. Um grande número de autoridades sanitárias e judiciais já passou pela casa de Natália Zarubina, mas, por enquanto, ainda não chegou à família o apoio prometido. Inna Galadkina, presidente da freguesia de Pervomaisk, da qual Pretchistoe faz parte, mostra-se preocupada com a situação, mas também não tem nada para oferecer à família. Questionada sobre a possibilidade de as autoridades conseguirem instalar Natália e a menina num pequeno apartamento com condições mínimas de vida, responde: "A nossa prioridade é dar condições de habitação condignas aos veteranos de guerra (II Guerra Mundial) e não temos meios para isso, pelo menos por agora."

NOTAS

BRAGA: IMIGRANTES SOLIDÁRIOS

Uma centena de pessoas, na sua maioria cidadãos russos e ucranianos, juntou-se domingo no centro de Braga numa manifestação pelo regresso da pequena Alexandra

PETIÇÃO: 18 MIL ASSINARAM

A petição nacional pela Alexandra já reúne mais de 18 mil assinaturas. Destina-se à Embaixada Russa em Portugal, à Assembleia da República, ao Ministério Público e à Unicef

AGRESSÃO: HÁ MAIS IMAGENS

A petição nacional pela Alexandra já reúne mais de 18 mil assinaturas. Destina-se à Embaixada Russa em Portugal, à Assembleia da República, ao Ministério Público e à Unicef